segunda-feira, 6 de junho de 2011

Vermelho ou Encarnado?

Acendi um cigarro. Inspirei a primeira vez e veio tudo à cabeça. Aquele encarnado forte que me rodeava das mesas e dos cafés fez-me sentir enjoada. Encarnado escalarte, sem dúvida; forte e maduro tal como as cerejas que comi hoje ao almoço. Olho em redor e tudo o que vejo à minha volta é da mesma cor: os toldos, os sinais, os carros, as pessoas. Até as pessoas. Até eu tenho a mesma cor vermelha que preenche a cidade. Vermelho de sangue, de dor, de sofrimento. O vermelho que corre no nosso corpo, o vermelho que o Nosso Senhor escorreu ao ser sacrificado. Tenho fé e esperança que um dia o vermelho que me cobre se torne em branco ou em azul, como o céu nos dias de sol.
Talvez sejam só ilusões...talvez seja chegue a ser realidade aquilo que eu observo, pois a minha imaginação é tanta que por vezes não distingo o que vem da minha cabeça e o que não vem. Mas sei o que sinto... sei que sinto o encarnado na minha mente. Sei que ele não me vai deixar tão cedo. Permanecerá cá dentro eternamente.
A minha tristeza, essa sim, é a mais encarnada de todas. Vermelha escura, daquela que dói só de olhar. Escura como a noite cerrada ou um beco esquecido na cidade. É profunda, esquecida pelo tempo apenas pelos outros e permanente para mim. Frequente e por vezes impossível de suportar. E é isto.
Pousei o cigarro no cinzeiro da esplanada encarnada e deixei-o apagar, sozinho, sem pressa. Tudo tida voltado à cor real quando o cigarro se apagou.

domingo, 30 de janeiro de 2011

As minhas flores.


Não te amo, quero-te. Quero-te como quero cuidar das rosas vermelhas do meu jardim; com todo o carinho e amor. Regarte-ia todos os dias com o meu jarro amarelo, podava-te sempre que chamasses por mim. Esperaria o máximo até te cortar pela raiz, de modo a que voltasses a crescer, à velocidade dos dias e com as tardes solarengas.
Juntaria ao teu canteiro outras belas flores, para que a solidão não se apoderasse de ti. Talvez lírios ou estrelícias, bem sei que gostas de flores coloridas.
Eras a flor mais bela do meu jardim.

A Quinta.


A poeira circulava feita em rolos, que aumentavam à medida que giravam, devido ao vento.
A areia cercava o terreno dele, como se fosse uma vedação, para tornar a sua propriedade ainda mais privada.
A quinta, essa sim, era coberta de musgo e plantas trepadeiras que rodeavam as paredes, as janelas eram tapadas por portadas velhas com bastante falhas, deixando entrar o calor abafado.
O tempo que preenchia a paisagem era quase sempre idêntico: quente demais para se viver.
Lá na quinta vivia ele com a sua gata castanha, demasiado velha para sair do cesto encostado à lareira, apagada á anos.
Durante os dias ele, deixando a gata nas suas sete quintas, ultrapassava a vedação de areia e corria ao sabor do vento, querendo manter o seu físico em forma. O exercício ocupava quase todo o seu dia, voltando à quinta apenas para almoçar e para se refrescar, não aguentando o calor.
O seu mundo criou-se apenas entre a quinta, a vedação de areia e a área onde ele corria. Nem a gata o irá salvar.
Ele tem a plena consciência de que, mais cedo ou mais tarde, na sua solitária quinta, com a sua gata, encostados à lareira apagada, rodeados do calor ofegante, irá morrer.

Sala de aula

Ela estava sentada na cadeira do fundo, encostada à parede. Sentia-a ausente; distante. A Dona Inácia chamava-a a atenção constantemente, para ela se endireitar e se concentrar, embora o seu corpo não permitisse que ela coubesse na pequena cadeira de madeira.
Chovia bastante lá fora. A temperatura da sala deveria apenas atingir os dez graus, de modo que todos estavam encolhidos e cobertos de casacos. Até a Dona Inácia, que é uma mulher calorenta, de dois em dois minutos dava aquele berro a repontar com o frio, sempre que se chegava perto da janela.
A rapariguinha lá continuava, quieta e serena, com os seus pensamentos, no seu mundo. Com o seu cabelo encaracolado e pouco penteado, lá o endireitava para não ultrapassar a lente dos óculos. Tinha um aspecto solitário, a coitada da menina.
A Dona Inácia e a rapariga do fundo da sala eram mãe e filha.